Ao longo dos dias em que estive fora fui acompanhado a guerra que decorre na fronteira do Líbano. Fui vendo a destruição, a morte, a dor, o ódio que se alastra de parte a parte. Fui ouvindo as declarações de boas intenções da comunidade internacional. E fui ordenando umas ideias. E fui avivando a memória do passado. E lembrei-me que já vi este filme várias vezes e que será difícil não voltar a vê-lo no futuro. Mas vamos às ideias.
O começo
Depois de tantos dias de guerra há tendência para esquecer quem começou esta guerra com uma provocação perfeitamente despropositada. E quem começou esta guerra foi o Hezbolah ao atacar em território israelita um grupo de soldados israelitas matando e raptando dois deles. Uma das perguntas que não têm sido feita ao longo desta guerra é porque razão o Hezbolah fez este ataque? Fê-lo apenas como rotina de ataque a Israel ou tinha outra intenção por trás? Fê-lo para ter uma moeda de troca por prisioneiros árabes presos em Israel ou fê-lo visando outro tipo de objectivos? Fê-lo por conta própria ou mando do Irão ou da Síria? As intenções do Hezbolah a este nível não são muito claras, embora diga que quer trocar os soldados israelitas por combatentes árabes, não sabemos ao certo se é só isso que está por trás do rapto?
Também não sabemos se o Hezbolah estava à espera de um resposta israelita desta dimensão ou se de facto calculou que isto ia acontecer. Fazendo um paralelo com aquilo que aconteceu na faixa de Gaza em Junho com o rapto de um outro soldado era de esperar que Israel reagisse em força no sul do Líbano. Portanto, não é de todo irrealista imaginar que o Hezbolah já estava à espera de um resposta dura por parte de Israel e que estava preparado para o que aí vinha.
A resposta
Também é difícil imaginar que outra resposta diferente Israel podia ter dado a uma provocação destas. Podia obviamente ter optado por uma resposta mais suave fazendo como muitas vezes fez no passado, ou seja, bombardeando de forma localizada e depois optando por um caminho negocial que levasse à troca dos soldados por prisioneiros islâmicos. Já o fez nos últimos anos e podia fazê-lo de novo. Mas se o fizesse também dava um sinal de fraqueza ao Hezbolah que no futuro teria novamente a tentação de voltar a raptar soldados para atingir os seus objectivos. Por outro lado, todas as trocas de soldados no passado foram sempre muito desvantajosas para Israel. Por isso, Israel também estava nesta crise perante um dilema difícil. Ou atacava em força como fez ou então dava um sinal dúbio ao tentar negociar a libertação dos soldados em troca de muita coisa. Optou pelo caminho da força como já tinha feito na faixa de Gaza, mas calculou mal a resistência e a resposta do Hezbolah e entrou num caminho que não é seguro que traga uma solução satisfatória a prazo para o estado hebraico. Além disso, não tem conseguido gerir bem o uso do poder aéreo que tem obviamente limitações quando lida com forças que usam zonas civis para disparar mísseis ou para esconder armas. As mortes de gente inocente no Líbano mostram que os limites do poder aéreo não têm sido bem geridos e que as informações recolhidas para os ataques nem sempre são fiáveis. Este tipo de problemas é comum em campanhas aéreas e já aconteceu noutras guerras como no Afeganistão ou no Kosovo. Mas no caso israelita, os erros têm repercussões políticas enormes, daí que todo o cuidado é pouco.
O objectivo de Israel é mudar a situação na fronteira do Líbano, ou seja, impedir que o Hezbolah faça ataques contra Israel seja com mísseis seja em acções terrestres. Ora este é um objectivo difícil de alcançar, pois mesmo com uma faixa de segurança de 20 km é óbvio que o Hezbolah poderá ter mísseis com maior alcance que os Katyucha que poderão sempre atingir o norte de Israel, que actualmente é já uma zona despovoada devido à ameaça constante dos Katyucha. Depois em relação aos soldados raptados nunca serão libertados sem nada em troca. Portanto, Israel não terá no fim da guerra alterado grande coisa na fronteira norte, a não ser a criação da faixa de segurança e uma cessação temporária dos ataques do Hezbolah. É claro que a acção israelita não visa uma permanência a longo prazo das tropas israelitas na zona tampão. Israel já teve uma má experiência a esse nível no passado e sabe que se permanecer muito tempo no sul do Líbano vai ter uma guerra de desgaste permanente com o Hezbolah. Portanto, não admira que esteja interessado numa presença futura de tropas internacionais. Mas essa é também uma solução complexa, pois não sabemos ainda que força será essa, que competência terá e será capaz de conter o Hezbolah? Diria mesmo que este último aspecto é dos mais importantes. A contenção do Hezbolah, dado que não me parece possível o seu desarmamento a breve prazo.
A guerra
Como todas as guerras só traz destruição, dor e morte. A morte, o sofrimento, o desmantelamento do que temos é isso que vemos todos os dias. Seja do lado do Israel seja no Líbano. É claro que a dimensão da destruição é completamente diferente de um lado ou do outro, mas em ambos os casos vemos gente a sofrer e vidas completamente arrasadas. Por isso, custa ver o prolongamento da guerra, a destruição quotidiana de cidades. Em Israel vemos claramente a diferença entre militares e civis, mas no Líbano essa diferença é mais ténue. É que o Hezbolah também é o povo. Há armas escondidas em casas particulares, há o uso da infra-estrutura civil com fins militares. Mas também há gente inocente que perde tudo de um momento para o outro. Nem tudo é o Hezbolah. E isso Israel nem sempre tem conseguido distinguir. Têm ocorrido erros graves para uma força que usa da mais avançada tecnologia do mundo para atacar e recolher informações. E esses erros podiam ser minimizados com uma gestão mais criteriosa dos alvos e da informação disponível. É óbvio que do ponto de vista militar estes erros ocorrem sempre, mas são mais prováveis numa guerra em que os alvos possuem um forte espectro civil. E por isso o cuidado deve ser maior, o que parece que não tem acontecido. Depois a campanha de devastação que Israel tem exercido por todo o Líbano vai deixar o país num estado lastimoso.
O Líbano
Como sempre está no caminho da guerra. Há 30 anos que não conhece outro destino. Sempre foi um estado frágil que nunca conseguiu exercer a sua soberania em todo o território nem fazer frente aos seus vizinhos poderosos. Hoje continua na encruzilhada. Nada pode fazer contra Israel, nem contra o Hezbolah. Aliás, as acusações frequentes por parte de Israel de que o Líbano nunca foi capaz de desarmar o Hezbolah são irónicas, pois se nem próprios israelitas conseguiram dominar o movimento islâmico como é que o Líbano ia fazer isso?
O Hezbolah
Há muito tempo que é um estado dentro de outro estado. Vai sair a ganhar desta guerra. Não só porque mostra ser a única força no Líbano capaz de fazer frente aos israelitas (e isso dá-lhe apoio), como também não vai ceder às exigências israelitas de libertação dos soldados raptados. Mostrou também uma capacidade de resistência e de ataque acima das expectativas. Além de grupo religioso e político com influência no Líbano tem hoje uma força armada poderosa capaz de atacar Israel e de lhe fazer frente. Como grupo islâmico radical visa obviamente a destruição do estado de Israel, mas se um dia ficar isolado em termos de apoios e de contexto político na região poderá ser obrigado a mudar de discurso ou pelo menos a desarmar. Mas até lá não mudará muito a sua linha de acção, nem abdicará da componente armada enquanto a situação política na região não mudar. Portanto, vai continuar a ser um problema para Israel, para o próprio Líbano e para a estabilidade da região.
A Síria
É a chave para a contenção e desarmamento do Hezbolah. Enquanto quiser e o desejar o Hezbolah terá força no Líbano. As razões porque a Síria apoia o Hezbolah são completamente diferentes das razões do Irão. No caso iraniano há uma afinidade religiosa e um inimigo comum. No caso sírio há um inimigo comum e o interesse em ter um aliado no Líbano. Mas a Síria encara o estado hebraico como inimigo por razões diferentes do Irão ou do Hezbolah. Para a Síria o problema com o Israel está na ocupação dos Montes Golã. Não está na existência por si do estado hebraico. Ora todo o processo político actual tem marginalizado a Síria. Por isso, as soluções de paz que possam ser estabelecidas neste momento serão sempre muito frágeis, caso a Síria continue a ser ignorada.
Israel
Tem tido um problema grave de liderança política desde a morte de Rabin. Nenhum governo israelita tem conseguido levar a um bom termo um roteiro de paz que estabilize toda a região. É claro que a culpa não é só de Israel. Os árabes também não ajudam muito. Mas Israel é um país muito fragmentado politicamente e qualquer partido com maioria parlamentar precisa de fazer alianças para governar. E essas alianças são sempre fragmentárias em termos de interesses e isso torna difícil os sucessivos governos tomarem decisões corajosas que quebrem medos e inseguranças e permitam dar passos em frente. Por outro lado, os líderes políticos israelitas desconfiam profundamente dos árabes e lidam sempre com muita cautela quando se trata de obter acordos. Afinal estão cercados de inimigos e habituados a um estado permanente de guerra. Na verdade, estão mais habituados a usar força do que a diplomacia. Depois são líderes eleitos que gostam obviamente de ganhar eleições e que precisam de sentir apoio eleitoral para tomarem decisões difíceis. Portanto, tudo isto dificulta a obtenção de soluções que estabilizem toda a região. Sharon conseguiu, no entanto, dar um pequeno passo ao sair de Gaza, mas não teve hipótese de fazer mais nada. Mas Israel vai sair a perder desta guerra. Vai continuar a ter um inimigo poderoso a norte apesar de toda a força que está a usar. E vai ter também que dar muita coisa em troca para ter de volta os soldados raptados.
O futuro?
É óbvio que este é daqueles conflitos que só se resolve com um acordo geral de paz, que envolva uma solução definitiva para o problema palestiniano e também uma solução definitiva com a Síria. É óbvio que isso também não é possível no momento actual, mas é bom que se caminhe nesse sentido senão nunca mais teremos paz na região. A situação actual terá que acabar num cessar-fogo e no reconhecimento que muita coisa tem que mudar na região para não voltarmos a cair nisto a médio prazo. Mas não é obviamente possível esperar que um cessar-fogo mude muita coisa a breve prazo. A situação vai continuar tensa por tempo indeterminado.
O Hezbolah é apoiado pela Síria e pelo Irão. Será praticamente imposssível mudar a posição do Irão em relação a Israel, mas com a Síria o caso é diferente. A Síria tem obviamente interesse em resolver os problemas que tem com Israel e se esses problemas fossem resolvidos a situação no Líbano podia mudar e o Hezbolah podia ser desarmado. Enquanto a Síria não for envolvida no processo, o Hezbolah continuará a ter apoio para fazer o que bem entender e para continuar armado.
Por outro lado, o problema palestiniano também carece de uma solução definitiva que passe pela criação de um estado palestiniano livre e democrático constituído pela faixa de Gaza e pela Cijordânia. É claro que a presença do Hamas no actual governo não facilita o processo e cria dificuldades enormes a Israel que não negoceia com terroristas. Mas há passos que têm que ser dados por ambas partes.
O primeiro é acabar com o clima de hostilidade. O Hamas tem que parar com acções ofensivas contra Israel e vice-versa. Depois o Hamas que tem que reconhecer a existência de Israel como estado de pleno direito e renunciar definitivamente ao terrorismo. Se isto acontecer nos próximos tempos será positivo no sentido da paz. E soluções como a retirada unilateral que foi feita em Gaza mostram que a prazo não resolvem o problema palestiniano.