Ao contrário da malta mais nova sou contemporâneo de um mundo onde o terrorismo estava muito mais diversificado do que agora. Sou contemporâneo de um tempo em que existiam 800 organizações terroristas em 88 países diferentes. Sou contemporâneo de uma época em que existiam por ano cerca de 800 incidentes envolvendo acções terroristas. Este tempo era o mundo dos anos 70 e 80, onde o terrorismo foi particularmente activo. Entre 1970 e 1984 o número de mortos chegou a 41 mil e o de feridos a 24 mil. Uma boa parte desse terrorismo era islâmico e visava já na altura interesses americanos e israelitas como agora, embora não fosse um terrorismo global como actualmente é. Era um terrorismo mais concentrado na Europa ou no Médio Oriente. Era um terrorismo localizado em função de problemas nacionais. Não tinha o espírito global da Al-Qaeda.
Mas além da nuance global, uma outra diferença é que os americanos não eram atacados no seu próprio território como foram no 11 de Setembro. De resto, ataques a embaixadas, aviões, discotecas, tropas estacionadas aconteciam com maior frequência do que agora. Eram mesmo o prato do dia. Portanto, não tenho a memória curta de muitos que acham que só agora é que o terrorismo bateu na porta da Europa. O terrorismo sempre andou por cá, fosse ou não fosse islâmico. Só que muitos desses movimentos terroristas foram desmantelados com o passar do tempo e a Europa começou a sentir-se mais segura e achou que o terrorismo global era mais um problema dos Estados Unidos. Achou que os americanos é que estavam em guerra.
Também na altura os terroristas da OLP ou de outras organizações islâmicas queriam acabar com o apoio americano a Israel e a eliminação definitiva deste Estado e a criação de um estado palestiniano. Também como agora achavam que a política americana na zona era contrária aos interesses do povo muçulmano. Só que em muitos casos estes movimentos de resistência islâmica estavam divididos e até combatiam entre si. Não tinham o grau de coesão que a Al-Qaeda tem neste momento e que lhe permite ter sucesso à escala global.
Mas estes combatentes árabes também não queriam os soviéticos no Afeganistão e foi por isso que muitos mujahideen foram para lá combater, não porque os soviéticos fossem ateus e comunistas, mas sim porque tinham invadido e ocupado um território mulçumano. É claro que o facto dos soviéticos serem ateus e comunistas não era algo bem visto pelos combatentes árabes, mas se fosse só por isso há muito que teriam lançado uma Jihad contra a União Soviética. O que os motivava mesmo eram as acções do Exército Vermelho. E foi contra ele que lutaram, não contra o comunismo e o ateísmo soviético.
Foi neste viveiro que se formaram muitos elementos da Al-Qaeda. Foi neste viveiro que muitos viram que aqueles que lhe forneciam armas, comida, dinheiro e treinamento eram os mesmos que apoiavam políticas e acções contra muçulmanos noutros lugares do mundo, que davam apoio a regimes islâmicos tirânicos e corruptos, que queriam controlar os recursos petrolíferos da Península Arábica, que apoiavam invariavelmente a política israelita em relação à Palestina e etc… Era por isso natural que ganhassem ódio aos seus patrocinadores, não por os americanos serem cristãos ou terem um regime democrático ou por terem mulheres a posar nuas nas capas das revistas. Embora isso fosse ofensivo para um mulçumano devoto, desde que isso não chegasse a território mulçumano tudo bem.
Portanto, essa história de que os terroristas querem acabar com o nosso modo de vida é um disparate e que tem sido difundido por agentes políticos e comentadores pouco perspicazes. Essa história que os terroristas são uns loucos que querem matar toda a gente sem razão nenhuma é outro disparate. É óbvio que eles querem matar em grande escala, mas não são loucos e tudo o que fazem é pensado e calculado ao milímetro. E não é por nenhuma pulsão niilista como já li várias vezes. O ódio que têm pelo Ocidente tem razões, mas não são concerteza niilistas.
É claro que muitos muçulmanos devotos não gostam obviamente do nosso modo de vida e acham que vivemos em pecado e que o Estado não pode estar separado da religião. Mas acham também que isso é um problema nosso e não vão fazer nenhuma Jihad por causa disso, senão já a tinham feito há muito tempo. Agora o que acham é que ao tentarmos exportar os nossos modelos para países árabes estamos a atacar o Islão e os seus costumes. Estamos a exportar a corrupção e o pecado, estamos a contaminar o mundo islâmico com os nossos vícios e depravação. E isto aflige obviamente muitos devotos.
Também acham que Israel não tem direito a existir e que o objectivo judeu é promover a criação do “Grande Israel” do Nilo ao Eufrates e que actual ocupação do Iraque serve esses planos. Também acham que a presença americana no Iraque é pelo petróleo, o mesmo acontece em vários países da Península Arábica. Acham mesmo que é uma vergonha vários países desta zona terem tropas americanas no seu território, nomeadamente a Arábia Saudita, onde estão os dois santuários mais importantes do Islão. Acham também que por todo o mundo, os muçulmanos são atacados em vários países com a complacência do Ocidente e mesmo com o seu apoio. Ah, e acham também a presença de tropas ocidentais no Afeganistão uma afronta.
Em suma, acham que o Ocidente está em guerra contra o Islão e que por isso devem defender-se. É isto que passa na cabeça de muitos suicidas, que também acham que depois da morte como mártires possuem 70 virgens à espera deles no Paraíso (é óbvio que nem todos pensem isto, mas não deixa de ser uma boa motivação para a malta mais nova).
É claro que nós na nossa ignorância temos tendência a reduzi-los a um bando de fanáticos cheios de ódio pelo Ocidente que querem acabar com a nossa democracia. Mas muita desta gente até estudou cá até viveu o nosso modo de vida sem nunca protestar. O que realmente os motiva não é o que somos é o que fazemos fora das nossas fronteiras.
Se lermos os comunicados da Al-Qaeda, as entrevistas de Bin Landen percebemos isso facilmente. Ora Bin Landen soube de forma muito hábil captar este ressentimento contra o Ocidente e usá-lo a favor da Al-Qaeda transformando-a num símbolo e numa filosofia. Conseguiu mesmo criar a seu favor uma simpatia global pela sua causa, o que faz com que jovens muçulmanos nascidos e criados na Inglaterra ataquem o seu próprio país como aconteceu agora em Londres. Os jovens que atacaram no metro e no autocarro eram jovens perfeitamente integrados. Os próprios vizinhos ficaram admirados. Mas por algum motivo acharam que as causas da Al-Qaeda tinham sentido e que eles deviam sacrificar a sua vida por isso. E é este tipo de militância em causas que para nós são absurdas que devia ser analisado e compreendido. E não me digam que os autores do acto eram loucos ou que estavam animados pelo niilismo ou queriam destruir o modo de vida britânico e outros disparates do género.
Mas talvez o mais notável na acção de Bin Landen (além da militância e da adesão que consegue produzir em pessoas insuspeitas) é o facto de ter conseguido concentrar o ressentimento de muitos muçulmanos sobre os Estados Unidos, algo que nunca tinha sido conseguido antes de uma forma tão direccionada. Daí que o seu terrorismo tenha adquirido uma dimensão global, pois tornou-se uma boa causa para muitos grupos islâmicos radicais, que combatiam os governos dos seus países e que agora estão também receptivos a combater interesses americanos. Mas tornou-se também um herói para muitos muçulmanos pelo mundo inteiro que acham que o mundo islâmico está ser constantemente vítima de ataques ocidentais.
É claro que o Ocidente já devia ter agido há mais tempo contra este tipo de ameaças. O 11 de Setembro podia ter sido evitado, caso o poder político americano tivesse levado a sério as informações que tinha sobre Bin Landen e a Al-Qaeda. Caso tivesse levado a sério os ataques da Al-Qaeda nos anos 90 e as ameaças de Bin Landen de fazer mais e melhor. Aliás, é interessante como as políticas de combate ao terrorismo têm sido reactivas e não activas. Ainda agora com os atentados de Londres, o ministro britânico das Finanças veio dizer que os países da União Europeia têm que ser mais incisivos no controlo das fontes de financiamento do terrorismo e que devem tomar outras medidas. Ora pelo menos desde o 11 de Setembro que isso devia ser assim. O espantoso é que venha agora um ministro dizer isso. O espantoso é que medidas que estavam agendadas há anos só agora comecem a ganhar forma. Ou seja, afinal parece que a Europa pouco tem agido a esse nível. Como é que isto é possível depois de tudo o que já aconteceu? Bem, é possível porque a Europa ainda não percebeu que isto também lhe diz respeito.
É claro que a pressão militar é importante e a captura de líderes também e o controlo dos financiamentos também. Mas a Al Qaeda tem facilidade em substituir os líderes mortos ou capturados e mesmo que Bin Landen morra a organização continuará. Também arranjará dinheiro de alguma forma, pois tem muitos simpatizantes e alguns deles bem ricos. Por isso é necessário ir mais longe. E ir mais longe é perceber de uma vez por todas o que pensam os muçulmanos e o que devemos fazer para alterar esse pensamento. É claro que isto não significa diminuir a pressão militar e policial que deve continuar de forma séria e incisiva. O combate que travamos deve continuar a todos os níveis e é um combate para muitos anos. Portanto, deve ser um combate em duas frentes. Uma militar e outra política, diplomática, financeira e cultural. Agora pensar que vamos resolver o problema unicamente de forma militar é um erro. Mas pensar que podemos prescindir de actuar de forma militar também é outro erro.
Portanto, as causas para este tipo de ameaça estão de facto no modo como o Ocidente tem agido no mundo islâmico e na percepção que os muçulmanos possuem dessa acção. É claro que em várias das linhas aqui enunciadas a percepção pode ser distorcida e facilmente manipulada pelos líderes religiosos ou pelos líderes terroristas. Mas não deixa de ser verdade o apoio incondicional americano à política israelita esteja ela certa ou errada, a presença de tropas americanas nos lugares mais sagrados do Islão, a influência política, económica e militar dos americanos nos estados do Golfo, a complacência em relação a regimes árabes corruptos e ditatoriais, o fechar de olhos à guerra na Tecthénia e etc…
É claro que tudo isto acontece porque os Estados Unidos defendem obviamente os seus interesses na região e que em muitos casos estão para além da tão apregoada democracia e liberdade nos países islâmicos.
Por isso, a guerra avizinha-se interminável, pois não podemos ceder naquilo que a Al-Qaeda quer. Nem podemos num curto espaço de tempo mudar a percepção que muito árabes têm das políticas ocidentais em relação ao Islão. É uma mudança lenta e é por isso que a pressão militar não pode diminuir. É claro que invadir o Iraque foi um disparate enorme que só piorou a situação. Portanto, a pressão militar tem que ser feita de forma inteligente e ponderada e não de forma aventurosa e irresponsável.
Já agora para os menos atentos a estas questões, aconselho vivamente a leitura do livro do Michael Scheuer, um antigo analista da CIA, que escreveu o
“Orgulho Imperial” traduzido agora para o português pela Edições Sílabo.